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Historema 15

Neste século de protagonismo das convicções, foi espantosa a atitude do meu amigo Saulo diante de uma grave decisão. Claro que grave apenas para nós, então adolescentes. Coisas do grêmio estudantil, um poder já moderado pela oficialidade da escola e que valia somente até a calçada do prédio. De todo modo, era aquele o rio que corria por nossa aldeia. Chegavam as eleições, e uma proposta de coligação entre chapas despertava desavenças e disputas pelas secretarias dominantes. Estávamos pressionados pelo surgimento do Bloco Galera, um grupo populista que minava o movimento estudantil. Aquela gente pregava um grêmio relegado a promover festinhas, atraindo deturpadamente colegas que nem eram propensos a votar. Fui incumbida de persuadir Saulo, que resistia contra a solução que considerávamos mais segura. Ele era, diga-se, voto vencido. Porém, mesmo na democracia débil da meninada, a insatisfação da minoria derrotada acaba sempre sendo um fardo a ser gerido depois por aqueles que fizer
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Historema 14

Depois de um dia maravilhoso, como um sábado no Ibirapuera com meu filho Wellington, eu vou para a cama, agradeço a Deus e durmo com um retrato mental daquelas horas, o calor ainda na minha pele. Mas acho que, com o pequeno menino, o que acontece é diferente. Trabalho diariamente no apartamento de sua mãe e ele sempre me pareceu um garoto normal. Ri quando se deve rir e chora quando se deve chorar. Pede doce e brinca de criar infernos quando o recusam. É bonito, rechonchudo, vulnerável. Mas acho que com ele é diferente o poder de adorar o que se acabou de viver. Naquele dia, fim da tarde, eu só esperava que voltassem do passeio, ele e a mãe, para poder descer ao ponto de ônibus. Quando entraram, vi que ele voou através da sala num grande estado de estímulo. A patroa comentou comigo: — Acho que ele nunca se divertiu tanto. Dava graça de ver o menino ofegante: — Vou escrever no caderno, mamãe. Vou escrever no caderno tudo o que aconteceu. Esquentei a comida para eles, um

Historema 13

O velhinho ia adorar aquela peça. Eu até já podia ver um sorriso escapando do seu recato meio acaipirado. Eu havia procurado bastante, mas foi numa hora inesperada que o disco apareceu. O bar barulhento inaugurado meses antes bem diante de minha porta trouxera ao meu comércio um novo público. A circulação aumentou, estendi o horário em quase todos os dias e foi numa sexta quase meia-noite que um guri calado chegou com quatro discos velhos e aceitou minha primeira oferta. A joia do negócio foi uma bolacha inacreditável de 45 rpm, trilha sonora de Love letters, filme de ainda antes dos bons tempos, com música de Victor Young. O velhinho ia adorar, sem dúvida. “Love letters”, a canção principal, nunca havia faltado no estoque, várias versões para cada década decorrida, menos ou mais meladas, menos ou mais espremidas ou esticadas, com voz, sem voz, nostálgicas, amodernadas. Mas ele desejava a primitiva e repelia as genéricas. Logo na segunda depois do almoço ele entrou pel

Historema 12

Eu poderia tentar alegar que era apenas um menino. Mas naquele instante, assim que vi Pedro cair na tocaia, mesmo criança entendi que eu tinha agido muito mal. Também poderia dizer que Maurício, muito maior do que eu, havia me coagido a representar aquele papel. Mas não tinha sido bem assim. Ele me mandou, mas não como quem impõe. Ele me mandou como quem acredita estar prestando um favor, dando a mim, e não aos outros moleques da rua, a oportunidade de participar daquela grande emboscada. Hoje tenho um filho. É um horror vê-lo com o menor dos ferimentos. Quando meninos, porém, em nossa própria carne um corte é um troféu. Pedro não saía mais de casa depois da escola. Sabia que Maurício queria pegá-lo, em vingança. Seria desigual. Pedro havia vencido a disputa anterior porque fora artilheiro como Davi, lançando uma bolinha de gude no Sansão. Distância prudente do guerreiro mais forte. Mas naquela tarde, logo após o almoço, bati no portão de Pedro e o chamei para jogar bo

Historema 11

Acho que sei por que não me esqueci do gesto que presenciei naquela tarde, uma ação discreta e sem vítimas. Foi marcante o golpe inusitado de uma violência não contra um organismo ou mesmo contra matéria inerte, mas contra o Sentido natural das coisas. No final da aula de Educação Artística, meus colegas adolescentes estavam profissionalmente entediados. Eu ainda rabiscava uns contornos no papel, convicto de que os conceitos teóricos haviam sido assimilados em minha mente, mas não mimetizados no exercício prático. Claro que as duas meninas na minha frente tinham se saído muito melhor. Eu não tinha pressa para terminar e entregar a obra-prima. Aquela classe à tarde era quase extra-curricular. Não existia nada para fazer depois. Porém mais da metade da sala escapou pela porta com sofreguidão logo ao primeiro toque do sinal. O Fabião, um notório repetente, era uma das exceções. Manteve-se mais tempo arrumando sua mochila, com todo o sossego. Alguns estudantes, entusia

Historema 10

No caminho até a quadra poliesportiva no fundo do pátio, percebi que o colégio que me contratou para arbitrar a competição não tinha nenhum negro entre seus alunos. Posso notar o fato logo, mas não vou protestar no jornal. Não estou no mundo para fazer revolução, por mais que me critiquem. Falta-me consciência de classe? Pessoas de todas as cores praticam ações que me embaraçam como ser humano. O que me faz lembrar aquele dia aconteceu mais tarde. O jogo começou e as equipes eram equilibradas. Defendiam as turmas de estudantes. Era a partida entre, digamos, a sala 11 contra a sala 16 — grupos formados dois meses antes, em parte por sorteio, numa papeleta pautada da secretaria, mas que lutavam encarniçados como se fossem religiões milenares. O adolescente que brincava de técnico de um dos times cumprimentou-me com educação e talvez até com dentes claros, antes do início. Ao longo da partida gritou muito com seus amigos e me fez perguntas. Irritou-se apenas de leve com algum

Historema 9

Eu quase não percebi aquele personagem diminuto. Era apenas um homem qualquer, sentado ao lado de uma moça no banco de espera do restaurante. Conversavam distraidamente quando entrei, faminto, procurando com urgência a anfitriã. Mas ela não estava no balcão do vestíbulo. Conheço bem a casa. Passei ao salão das mesas e ela me viu, voltando de acomodar três jovens lá no fundo: — Só um lugar hoje — expliquei. Aguardei de pé, ao lado do homem que falava continuamente com sua companhia. Éramos apenas nós três. Cinco minutos se passaram sem aparecer mais ninguém. A anfitriã enfim me chamou. Eu me movi para segui-la, mas o homem se interpôs abruptamente: — Nós chegamos antes. Percebi a consternação no olhar da funcionária, que deu uma espiada na sua ficha e perguntou o nome dele. Ele não havia se inscrito. — Mas o senhor sabe que nós chegamos antes — ele argumentou. Quase abri mão do privilégio, mas o estômago reforçou o seu sinal e eu respondi ao homem apenas com um gesto,