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Mostrando postagens de setembro, 2016

Historema 7

Algumas meninas arrancam os saltos para pisar já no chão fofo do elevador. Eu prefiro suportar a dor mais dois minutos, manter o porte e desabar somente no sofá da sala. Naquela noite, mesmo com essa pressa, segurei a porta para um homem do quinto, em quem nunca tinha prestado atenção. Ele não me agradeceu, ou despercebi. Encarou depressa, mas perceptivelmente, o decote que eu não havia tido tempo de trocar na saída do evento. Cada um apertou um botão. Foi então que ele disse: — Quanto é o programa, querida? Não sei de que modo externei o sufoco em meu coração ao ouvir essas palavras. Posso ter gemido, ou suspirado. Ele não me amedrontava. A pergunta teve até leveza, descuido. Não consegui dizer nada, ou não quis. Farejei por bafo de álcool, mas o resultado foi inconclusivo. Saí no meu andar sem lhe voltar o rosto. Já recebi propostas em eventos, mas sempre soaram diferente para mim. A pessoa é comedida, muitas vezes não avançando além da sugestão indireta. Isso me permite

Historema 6

“Leito de morte” é uma expressão que eu sempre tinha considerado romântica e exagerada até que visitei meu amigo Nelson numa tarde inapropriada em que havia enfermeiros e parentes circulando com agitação por toda a casa. O pai dele tinha piorado de alguma doença cujo nome sou incapaz de recordar, mas que em princípio não devia ser letal. Vinham de vozes — que claramente haviam tentado se controlar — manifestações de revolta contra médicos precedentes: — Deixaram ele ficar assim. Estávamos de férias e eu ia toda tarde até o Nelson após o almoço para trocarmos tiros no videogame ao som de rock pesado. Naquele dia passei direto pela porta destrancada e ninguém se lembrou de me mandar embora. Entendi o que estava acontecendo e fui espiar meu amigo sofrer. Entrei no quarto do seu Expedito, que estava inconsciente enquanto sua pressão era aferida por uma mulher desconhecida. A única outra pessoa no quarto naquele instante era o Nelson, que olhava para o pai com serenidad

Historema 5

* — O que essa careta está fazendo aqui? Nem cerveja ela bebe. Escutei essa frase a alguma distância. A própria Raquel não percebeu. As duas meninas que ouviram o Válter ficaram quietas. Só a Manoela concordou com a cabeça, indiferente. O calor de novembro não rompera de todo o nosso jeito matuto, e a piscina estava vazia naquele momento. Uns três ou quatro colegas tinham mergulhado um pouco antes, mas já se secavam ao sol, exibindo o tórax. Eu havia me empanturrado de carne e fiquei com medo de ter uma congestão dentro da água. A churrascada do pessoal da escola ia durar até de noite. Eu também não bebia cerveja. Mas eu é que tinha encomendado os barris e feito o açougue, então ninguém me hostilizava frontalmente nem fazia comentários dissimulados. Eu tomava refrigerante com desenvoltura e meu próprio senso de virilidade. Sentada perto da mesa, notavelmente afastada do convívio, a Raquel mantinha o sorriso ameno de quem, de algum modo, se considerava suficienteme

Historema 4

Ao começar a falar com Henrique, percebi algo estranho e assustador. Ando muito pela cidade e gosto quando encontro um amigo. Tenho centenas de amigos, talvez milhares: faz tempo que impugnei o status de “conhecido”. Aprecio a beleza de cada alma e amo pessoas cujo nome ignoro. Quem quer que cruze meu caminho pela calçada, eu detenho para ofertar sorrisos e trocar recordações. Alguns de início fingem não me ver. Chego a notar os passos se acelerarem e os olhos se arregalarem voltados para o horizonte. Nunca levo a mal. Existe a pressa, a timidez, o receio de não lembrarem meu nome. Mas seguro todos, sempre. Para os tímidos, sorrio como uma declaração de sua grande importância. Condescendo com os apressados, apertando suas mãos e me despedindo com desculpas por minha própria urgência. E liberto do embaraço os esquecidos, fingindo que minha memória é ainda pior: — Qual seu nome, mesmo? Às vezes a maldade do acaso me nega tais encontros por períodos muito longos.  Por

Historema 3

Uma mulher de quase cinquenta anos nascendo de novo. Foi diante de toda a classe, mas somente eu percebi. Era a última aula da manhã. Dona Olinda entrou na sala e não fez nenhum gesto para tolher as conversas fomentadas pelo meio-dia quente. O Vinícius ainda estava de pé e só se abancou depressa na carteira quando eu o adverti com um cutucão. As três alunas caxias, sentadas sérias mais à frente, começaram a copiar os rabiscos que Dona Olinda arrastava calada ao longo da lousa verde. O Marcelo deu uma risada alta lá no fundo, mas ninguém prestou a atenção. Quase todos falavam. Tomei algumas notas enquanto escutava a Edilene, pertinho de meu ouvido, declarar sua contrariedade sobre algum evento que havia presenciado durante o recreio. Não compreendi direito, ou não me recordo. Tínhamos quinze anos. A professora voltou-se para nós e começou a explicação com uma voz mecânica, mas as primeiras frases foram muito diretas e eu balancei o pescoço escrevendo no caderno o que pe