Acho que sei por que não me esqueci do gesto que presenciei naquela tarde, uma ação discreta e sem vítimas. Foi marcante o golpe inusitado de uma violência não contra um organismo ou mesmo contra matéria inerte, mas contra o Sentido natural das coisas.
No final da aula de Educação Artística, meus colegas adolescentes estavam profissionalmente entediados. Eu ainda rabiscava uns contornos no papel, convicto de que os conceitos teóricos haviam sido assimilados em minha mente, mas não mimetizados no exercício prático.
Claro que as duas meninas na minha frente tinham se saído muito melhor.
Eu não tinha pressa para terminar e entregar a obra-prima. Aquela classe à tarde era quase extra-curricular. Não existia nada para fazer depois.
Porém mais da metade da sala escapou pela porta com sofreguidão logo ao primeiro toque do sinal. O Fabião, um notório repetente, era uma das exceções. Manteve-se mais tempo arrumando sua mochila, com todo o sossego.
Alguns estudantes, entusiastas de seu ofício, cercaram a professora lá na frente. Ela distribuía elogios, uns sinceros, outros encorajadores.
— Ah, eu tenho cópias desta música aqui — ela disse aos pupilos. — Com cifras para violão.
Careço do desembaraço para manobrar qualquer instrumento, mas ela havia me dado o mesmo papel antes do começo da aula, porque eu tinha chegado mais cedo que os outros e devia lhe parecer musical ou sensível. Era uma bossa suave daquela época, de exaltação da natureza e da beleza da vida.
Distante de mim e também da pequena assembleia perto da lousa, o Fabião acabou de ajeitar suas coisas e levantou-se indolente para sair de cena. Cruzou a sala tão morosamente que a professora não precisou se adiantar para falar com ele:
— Fabião, leva uma cópia. Lembrei de você! Sei que toca!
Ele se aproximou da professora parecendo surpreso de que ela estivesse se dirigindo a ele. Aceitou a folha sem preocupação. Nem olhou o que era. Ela já estava ocupada com outro aluno e não percebeu que Fabião não chegou a agradecer. É possível que apenas eu tenha notado isso.
E também vi que ele não guardou o papel na mochila. Caminhou até o lado de fora da sala, onde saiu do alcance da visão da professora — mas não do meu. Naquele ponto quase cego, enfim, ele parou de andar e dedicou uma olhadela para a letra da canção com cifras.
Esse trabalho prolongou-se pela infinidade de uns dois segundos. No terceiro segundo, a celulose foi endereçada de novo ao caos: as duas mãos de Fabião amassaram a música, que ele parecia ter julgado inútil.
Em seguida escapou. Lá na frente da sala a professora ainda sorria, cantarolando a melodia em duo com uma aluna prestativa.
Gostei!
ResponderExcluirUm abismo muitas vezes, é verdade! Professores e alunos é coisa "prá mais de metro"! Já ouviu essa expressão? Também gostei!
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